Danúbia Otobelli e Gissely Lovatto Vailatti

Danúbia Otobelli e Gissely Lovatto Vailatti

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Corpus Christi: as cores da fé que geraram impasses

Ansiosa, a comunidade guardava itens que poderiam ser usados na confecção dos tapetes. A serragem era colorida na casa dos próprios voluntários

Os acordes sonoros dos sinos do campanário soaram diferente naquela manhã fria de 28 de maio de 1964. Ao chegarem em frente à Igreja Matriz para celebrar a procissão de Corpus Christi, os florenses se depararam com algo inusitado. As ruas no entorno das quadras centrais estavam enfeitadas com tapetes coloridos. Era uma grande novidade! Sob a coordenação das Irmãs da Escola São José, alunos, membros da juventude e voluntários passaram à noite colorindo serragem. Com as mangas arregaçadas e tintas adquiridas com dinheiro arrecadado, os voluntários confeccionaram mais do que símbolos eucarísticos, criaram uma tradição. Nascia, naquele dia, o Corpus Christi de Flores da Cunha, que anos mais tarde se tornaria um ‘patrimônio’ turístico e religioso do município.
A história nos conta que em 1963, durante uma visita a Indaial, em Santa Catarina, Raymundo Paviani, que assumiria a prefeitura no ano seguinte, conheceu uma celebração em que a população produzia tapetes para celebrar a festa do Corpo de Deus. Extasiado com a beleza, Paviani, juntamente com a irmã Joana Gasparin, sugeriu a realização do feito em Flores. Em 1964, a ideia era colocada em prática. Conforme registros no Livro Tombo da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, “estenderam verdadeiros tapetes nas ruas por onde passou a procissão. Além disso, confeccionaram nas mesmas ruas, ainda com serragem pintada, sugestivos símbolos da Eucaristia. Foram armados três artísticos altares, dedicados respectivamente à família, a sociedade e a estudantes. Uma família, o prefeito e uma professora, no respectivo altar, fizeram uma oração especial”. 
Nos anos seguintes, os adornos foram tomando forma. Ansiosa, a comunidade guardava itens que poderiam ser usados na confecção dos tapetes. Pó de café, folhagem verde, flores da estação, farinha de mandioca, cascas de ovos e tampinhas de alumínio também eram coletadas entre as famílias e utilizadas na produção. A serragem era colorida na casa dos próprios voluntários. Cada entidade ou grupo era responsável por providenciar o material. Para enfeitar as quadras, os voluntários precisavam virar a madrugada, já que os tapetes percorriam várias ruas - Avenida 25 de Julho, John Kennedy, Borges de Medeiros, Maria Dal Conte, Dr. Montaury e Frei Eugênio.  “Vai se tornando tradicional a festa do Corpo de Deus em nossa cidade. Doze quadras foram artisticamente ornamentadas, dando um aspecto de grande, variado e rico tapete. [...]. A procissão e as ruas foram televisionadas e filmadas. A ocorrência de fiéis foi calculada em cinco mil pessoas”, consta no Livro Tombo de junho de 1966. 
A celebração com tapetes coloridos aconteceu ininterruptamente até 1968, quando foi enfeitada somente a quadra da Praça da Bandeira. No ano seguinte, por motivos desconhecidos, a procissão foi suspensa. Por sete anos, os florenses deixaram de produzir os tapetes, mas em 1975, as ruas foram novamente atapetadas. Foi o ponto alto em termos de visitantes. Mais de sete mil pessoas, segundo informações do jornal O Vindimeiro, visitaram a cidade. Atraídos pela fé e pela abertura da 1ª Vindima da Canção, que ocorreu no mesmo período. 
Durante mais três anos as ruas foram atapetadas e atraiam cada vez mais turistas. “A comunidade se movimentou, participando da procissão e da decoração. Durante longas horas, à noite anterior à solenidade, a cidade foi trabalhada com carinho e com amor. As casas foram decoradas com toalhas, tapetes e imagens sacras”, noticiava o Jornal Pioneiro, de 11 de junho de 1977. Na mesma notícia, o periódico dizia que “Entendemos que Flores da Cunha está iniciando uma nova festa e achamos que nada obsta a que nas solenidades religiosas, se, una, a simplicidade [...]. Assim, louva-se a Deus e fortalece-se a imagem turística”.  Em 1978, chegaram a ser registrados dez mil fiéis, mas, no ano seguinte, a ornamentação foi novamente suspensa. Segundo o jornal O Vindimeiro, uma reunião entre os voluntários e a paróquia definiu pela não realização do evento. Os motivos eram muitos: o frio era intenso; muito dinheiro era gasto; as chuvas em junho eram frequentes; e várias pessoas não podiam trabalhar à noite. No jornal, consta: “Muitos membros da comunidade e visitantes interpretavam a ornamentação apenas como turismo, fugindo assim do verdadeiro espírito religioso da procissão”. Para suprir os tapetes, naquele ano foi realizada uma procissão luminosa. 
Mais uma vez Flores desistia de produzir suas obras de arte. Até 1982, não ocorreram enfeites e a celebração de Corpus Christi se resumia a uma missa. Entre os anos de 1983 a 1985, o município voltou a confeccionar os quadros. Porém, em 1986, o mesmo motivo turístico – que hoje é símbolo de orgulho – voltou a incomodar e a celebração foi suspensa. 
Somente em 1989, com as bênçãos de Frei Salvador – naquele ano foi realizada pela primeira vez a procissão do religioso concomitantemente ao Corpus Christi –, os florenses voltaram a se ajoelhar nas principais ruas e ornamentá-las. De lá para cá, apesar de inúmeras vezes quase não ocorrerem devido à chuva ou ao frio, os trilhos se consolidaram como uma atração turística e religiosa. E nunca mais deixaram de serem feitos. Ano após ano, a comunidade se une para expressar sua fé em tapetes coloridos. 

  

Nas fotos: Tapetes de Corpus Christi vistos do alto da torre e obras confeccionadas para a celebração de 1968.

Curiosidade: 
Atualmente, a celebração de Corpus Christi envolve mais de 250 voluntários, conta com cerca de 50 tapetes e utiliza uma média de 80 toneladas de serragem colorida.