Danúbia Otobelli e Gissely Lovatto Vailatti

Danúbia Otobelli e Gissely Lovatto Vailatti

Memória

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O que uma casa velha tem de tão especial?

Felizes aqueles que puderam ou conseguiram preservar e quando possível ressignificar espaços construtivos que deram origem a numerosas famílias

Casas são lugares de memória. Ao entrar nelas é como se velhas lembranças invadissem um túnel do tempo. Os pensamentos se perdem entre cômodos, móveis, vestimentas e objetos. No entorno, na paisagem, ressoam vozes, ritos, sons de utensílios, aromas, sabores, vivências que já não existem mais. Voltam à cena celebrações, festas, encontros, reencontros, convivências, casamentos, até mesmo funerais. Casas são uma espécie de “ninho”, para onde cada clã retorna depois de sua jornada. São um refúgio, um lugar sagrado. 
A caracterização do espaço residencial provoca instantaneamente uma retrospectiva histórica. Um olhar do presente sobre o passado para o que se considera tradicional, para o que está inserido num espaço de tempo e numa paisagem e nela se constitui como um todo. A própria posição de um imóvel diz muito sobre uma propriedade. Não somente o nascer e o pôr do sol ou a predominante direção dos ventos, mas a localização das nascentes, a iluminação, a passagem de velhas estradas, traçados, divisas, relações de vizinhança, elementos e materiais construtivos, transformações e permanências do uso ao longo do tempo.
Felizes aqueles que puderam ou conseguiram preservar e quando possível ressignificar espaços construtivos que deram origem a numerosas famílias. Espaços por vezes erguidos para abrigar menos de duas dezenas de pessoas, mas que, com o passar dos anos, tornaram-se referência para centenas, senão milhares de um mesmo tronco familiar. Ou ainda aquelas que, com a mudança de proprietário, recontam histórias de muita gente.
Não se trata, de nenhum modo, afirmar que tudo precisa ser preservado, porque se tudo fosse preservado não haveria lugar suficiente para o passado e o presente. Em algum momento seríamos sufocados pelo excesso de coisas. Trata-se efetivamente de pensar alguns espaços de referência, bens móveis ou imóveis, bens que podem ser tocados ou que tocam a gente por sua significância, especialmente aqueles que fazem parte de uma memória coletiva. É preciso motivar que algumas coisas façam com que as pessoas se reconheçam através de lembranças tocáveis.
Afinal, sofreremos para sempre o impacto causado pela mentalidade consumista imposta a partir do pós Segunda Guerra Mundial até os anos de 1980. O descaso para com o verdadeiro valor da histórica de cada lugar, provocou a demolição de casas e casarões, a queima de documentos e fotografias, tudo o que de alguma forma não representava as novas ideias do século XX. O novo precisava se consolidar para esquecer a tragédia mundial. Em nome disso, transitaram ideias propostas de forma inteligente e bem posta, onde as tradições locais das minorias étnicas passaram a ser vistas como símbolo de retrocesso. Nesse conjunto de mudanças que se impunham com a chegada de novas tecnologias e acúmulo de capital, inconscientemente, foram-se para sempre incontáveis resquícios que ligavam as pessoas às suas origens.
O reverso dessa história veio com o empreendedorismo turístico que vem se consolidando no município desde o início do século XXI e principalmente nos últimos anos. A iniciativa tem motivado a conservação, o restauro, ou a revitalização de antigas edificações. Velhos imóveis transformaram-se em espaços enogastronômicos, museus e memoriais. Passaram a integrar empreendimentos que sensibilizam e despertam admiração daqueles que passam por Flores da Cunha, reconhecendo através deles o diferencial cultural que existe neste lugar. As construções, os artefatos e as imagens integradas à preservação das paisagens são importantes elos que permitem evidenciar emoções e atrativos únicos. 
 

Curiosidade

Nos anos de 1980 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Rio Grande do Sul - IPHAE realizou um Inventário Regional do Patrimônio Cultural Material no qual identificou 17 edificações de referência em Flores da Cunha. Em 2002 o município deu início ao levantamento do patrimônio material local. Recentemente o poder público municipal retomou o projeto de inventário com o intuito de identificar 80 edificações de destacado valor cultural. O financiamento do projeto advém do Fundo Pró-cultura com investimento de recursos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul. As empresas patrocinadoras do projeto são Dallemole Estruturas Metálicas, Florense, Keko Acessórios, Mineração Florense e SIM Rede de Postos, com apoio do poder público municipal. A entidade proponente é a Associação dos Produtores de Arte e Cultura de Flores da Cunha (Apac). Para execução foi firmado Termo de Cooperação Técnica com o IPHAE. A apresentação dos resultados está prevista para maio de 2024, junto às comemorações do centenário de emancipação política do município.