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A criação é tarefa humana, é uma palavra demasiado humana

Não existem nuances do humano fora da ficcionalização da vida e dos elementos do real

Não existem nuances do humano fora da ficcionalização da vida e dos elementos do real. Este é o caminho para que entendamos a realidade, o que significa dizer que sofrer a vida ainda é, e duvido que deixe de ser, mesmo com a avassaladora inteligência artificial – que de inteligente tem quase nada – a mais plena maneira de sentirmos as arestas do mundo, de provarmos aquilo que nos coloca no caminho de sermos exatamente o que desejamos ser. Se pensarmos, por exemplo, nos mais importantes nomes da arte literária, como Shakespeare, Goethe, Flaubert, Machado de Assis, Carolina de Jesus, Guimarães Rosa, Beckett e Conceição Evaristo, fica evidente que esses artistas sabem o quanto de político e de humano está latente na sociedade e do quanto essa mesma sociedade precisa da representação desse humano. Em tempos de embates históricos, de tensões estéticas, de redefinições de dominação econômica e de assunções de minorias políticas, escritores e escritoras pensam o social a partir da articulação das necessidades históricas e da materialidade primeira da cultura, que é a palavra. Ela é a pedra fundamental do diálogo que nos eleva à condição de indivíduos soberanos, independentemente de nossa localização, de nossos desejos imediatos ou de nossas identidades. Portanto, a redenção do sujeito liberto do agenciamento programático da criação (artificial) origina-se na exploração e na interpretação da composição simbólica do imaginário social, expressada por um signo que é intrinsecamente plural e absoluto: a palavra, que, em primeira e última instâncias, é a materialidade da imaginação criadora e o veículo de representação social. Nessa ordem, inexiste outra via senão estabelecer conexões construtivas com o outro e partindo do outro. Isso porque as barreiras político-geográficas são incapazes de suplantar a aspiração humana por interconexão entre as pessoas, bem como a nossa curiosidade de sermos parte do desconhecido. E por que isso? Por que essa relação carece ser reconhecida? Porque temos a consciência de que escrever e criar a história é escrever e criar muitas outras histórias que pertencem ao mesmo regime de verdade. Não quero, aqui, apenas afirmar que a História é constituída unicamente pelas narrativas que compartilhamos, mas sim reconhecer que a motivação por trás dessas narrativas e a habilidade de atuar como agentes históricos estão intrinsecamente entrelaçadas. A esfera política e a expressão artística, assim como os conhecimentos que dão forma às ficções, representam rearranjos concretos dos símbolos e das imagens, moldando as relações entre a percepção visual e a expressão verbal; entre a ação realizada e as possibilidades a serem exploradas. A problemática concernente à ficcionalização dos elementos da realidade reside, primordialmente, na intricada questão da alocação de posições. Tomemos o teatro e a literatura como lastro: considerando a perspectiva platônica, por exemplo, a cena teatral se configura como um espaço que, simultaneamente, hospeda atividades públicas e serve de palco a manifestações imaginadas. Tal ambiente confunde os limites das identidades, das ações e dos territórios. A escrita, por sua vez, permeando diversos âmbitos indiscriminadamente, alheia ao seu destinatário, desmantela a base autêntica da circulação linguística. Essa circulação, que conecta os efeitos da linguagem às posições dos corpos imaginários no espaço compartilhado, vê-se assim subvertida. É esta a liberdade de entendimento que, de fato, necessitamos: o real precisa ser ficcionado, a fim de que possamos pensá-lo; e o atores sociais precisam ter a liberdade de criar, dentro de um balizamento intersubjetivo, fantasioso, imaginado, para que possam entender-se como realidade e como significação; como matéria e desejo. A criação e a ficcionalização do mundo são tarefas humanas, demasiado humanas, e não há saída para as crises bélicas, tensões econômicas, desassossegos existenciais e inquietações estéticas distante delas.

Daniel Conte 
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Pesquisador e docente dos Programas de Pós-graduação em Indústria Criativa e Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale.
danielconte@feevale.br