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A pororoca da indústria criativa

O fenômeno do encontro das águas tem consequências que parecem desastrosas, destruidoras, mas quando deixa de existir, é sinal de que algo não vai bem

Indústria Criativa. Parece extremamente contraditório juntar estes termos em uma expressão única. Tendemos a colocá-los em extremos opostos: ‘indústria’ sempre é um termo que parece ser diretamente conectado com uma ideia fordista de trabalho e lógica econômica. O trabalho das 9h às 17h, o intervalo para o almoço, o ponto sendo batido e a volta para casa, de segunda a sexta-feira. O salário no início do mês, o vale-transporte, vale-refeição, plano de saúde e tantos outros direitos adquiridos pelo trabalhador que atua em regime de CLT - hoje em dia, cada vez mais uma raridade, infelizmente.
Já a palavra ‘criativa’ parece implorar por uma interpretação romântica - que, na verdade, é erroneamente romantizada: um adjetivo, em oposição ao substantivo que o precede, o que já adiciona de início um tempero extra de visões fechadas sobre o que é um profissional da área criativa ou um artista. Imediatamente, essa palavra nos remete a “inspiração”, “iluminação”, “talento”, “eureka” ou tantas outras noções que apenas os próprios criativos sempre souberam ser apenas fruto de uma visão coletiva das sociedades, que os colocaram em um pedestal por um lado, e em uma posição inferiorizada, por outro.
A partir disso, proponho pensarmos na Indústria Criativa como uma pororoca, aquele fenômeno do encontro das águas da foz do Rio Amazonas com o Oceano Atlântico. Quem já viu algum documentário ou leu sobre vai lembrar: ele tem consequências que parecem desastrosas, destruidoras: árvores caem, o leito dos rios se modifica. Mas, quando o fenômeno deixa de existir em algum local, como tem ocorrido no Brasil em função da ação humana sobre a natureza, é sinal de que algo não vai bem. Um desequilíbrio no ecossistema, que traz consequências muito mais graves do que o fenômeno em si, é natural e se manifesta como forma de demonstrar equilíbrio entre as forças.
A Indústria Criativa é uma pororoca; precisamente, a área mais turbulenta do fenômeno que pode resultar, até mesmo, em ondas enormes. E é exatamente nesta área do encontro das águas que nós vamos focar para entender melhor o embate destes termos que parecem, à primeira vista, inimigos. Trago aqui, brevemente, minha experiência de pesquisa e de vivência na área para ajudar a elucidar a discussão.
Minha formação em jornalismo foi quase a única alternativa. Apesar de gostar muito dos estudos e discussões que a área proporciona, meu objetivo sempre foi ficar próximo dos meus verdadeiros amores: a música e o audiovisual. Porém, na época, eu não tinha como pagar nenhum dos dois cursos, e o jornalismo se apresentou como uma alternativa viável. Por isso, enquanto seguia na formação acadêmica, sempre trabalhei em curtas-metragens e televisão, atuei em todas as funções possíveis e juntei a música neste caldeirão através do trabalho com trilhas sonoras, que desenvolvo profissionalmente hoje em dia em paralelo a carreira na docência.
Uma das coisas que sempre me intrigou enquanto transitava entre estes mundos todos era a seguinte: como um músico ou um cineasta pode trabalhar de forma sustentável economicamente na área artística, cultural, criativa, sem que isso necessariamente precise sempre ser o seu hobby de fim de semana ou um complemento de renda? Ao longo da história, com algumas exceções, isso pareceu sempre algo um tanto inatingível ou mesmo intangível. Um sonho. O que a carreira acadêmica na pesquisa me mostrou, porém, era que havia, sim, gente vivendo de forma digna e sustentável a partir de suas produções artísticas e, mais do que isso, fazendo girar uma roda econômica importante. Minha dissertação de mestrado surgiu dessa indagação e de uma crença de que deveria haver alguma saída para o artista que quer viver de sua arte de forma integral.
A pergunta foi respondida de forma científica: um estudo de caso com uma banda independente do cenário porto-alegrense, que vivia das próprias criações, sem a interferência externa de grandes corporações e dentro de uma medida financeira que era suficiente para o sustento digno de todos os envolvidos.
Ali eu descobri o caminho para responder, ao menos em partes, a questão que sempre me perturbou ao longo de anos: eu amo arte, música, cinema. Será que vou algum dia conseguir viver disso? E, mais ainda, ajudar outros a alcançarem este objetivo?
A resposta estava lá no fenômeno da pororoca: quando as duas forças se encontram em equilíbrio, a gestão de um lado e a criatividade de outro, todo o ecossistema consegue sobreviver. Com dignidade.

Chico Pereira
Mestre em Indústria Criativa, professor e compositor