Geral

Crianças em risco

A morte de uma menina de seis meses na sexta-feira passada, dia 27, suposta vítima de maus tratos e omissão de cuidados de saúde por parte dos pais, reacende uma luz sobre violência doméstica, maus tratos e abandono de menores em Flores da Cunha.

A morte de uma menina de seis meses na sexta-feira passada, dia 27, suposta vítima de maus tratos e omissão de cuidados de saúde por parte dos pais, reacende uma luz sobre violência doméstica, maus tratos e abandono de menores em Flores da Cunha. Um inquérito policial será instaurado para verificar qual foi a causa da morte da criança, que estava internada na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), do Hospital Geral, em Caxias do Sul, desde o dia 2 de novembro. A menor foi hospitalizada devido a uma omissão de cuidados de saúde por parte dos pais. O laudo do Hospital atestou como causa de morte mal convulsional. "Vamos averiguar e se a morte foi decorrente de desleixo/omissão dos pais é possível atribuir a eles a responsabilidade da morte, no caso homicídio culposo ou até de dó eventual", diz o promotor. Segundo informações do Conselho Tutelar, uma denúncia anônima levou ao caso afirmando que a menor sofria de maus tratos e negligência por parte da mãe. Após a intervenção do Conselho Tutelar e do Ministério Público a criança recebeu atendimento médico. De acordo com o promotor Stéfano Lobato Kaltbach, Flores apresenta um quadro aceitável de violência contra menores. Ainda não é a situação ideal, mas também não está fora de controle. Entretanto, as denúncias frequentes apontam que o município está em situação de alerta. "Se pudéssemos imaginar um semáforo, essa situação representa um sinal amarelo. Temos que começar a nos dar conta que temos problemas e tratar disso. Vejo que estamos bem melhor do que cidades como Antônio Prado e Ipê, que são menores, porque lá a incidência é muito maior e proporcionalmente eles já acenderam o sinal vermelho", frisa o promotor. Números crescentes

De janeiro a outubro deste ano foram registrados pelo Conselho Tutelar 156 medidas aplicativas de acompanhamento e orientação aos pais e 535 medidas aos filhos, segundo o Ministério Público. Isso significa que até outubro, em relação a medidas aplicativas aos pais, houve um acréscimo de 136,36%. Ou seja, o mês de janeiro teve 11 medidas, em outubro foram 26, a maior registrada em todo o ano. O mesmo ocorre em medidas aplicadas aos menores (casos de violência escolar, por exemplo). Em janeiro foram 49 e o mês de outubro fechou com 124 orientações, aumento de 153,06%.Todas essas estatísticas envolvem maus tratos, negligência, evasão escolar, violência escolar e abandono. Segundo o promotor de justiça, Stéfano Lobato Kaltbach, esse crescimento mostra que os pais não estão mais conseguindo, por si só, controlar os filhos e tem recorrido ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público. "Esses números são bem significativos. A evasão escolar é uma das mais frequentes. São casos de desinteresse total, vão a escola, às vezes, somente por ir. Mas existem casos de violência doméstica, abandono material e abuso sexual que chegam até nós", diz o promotor. Em virtude desses números, o jornal O Florense conversou com Kaltbach sobre procedimentos, denúncias, estrutura e amparo para os menores. O que são medidas aplicativas A maioria das medidas de encaminhamento, orientação, matrícula e frequência escolar, auxílio à família, inclusão em programas comunitários e apoio psicológico, médico e psiquiátrico são aplicadas pelo Conselho Tutelar e estão previstas no Artigo 101, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Quando o CT não consegue fazer cumprir essas medidas por desinteresse dos pais, por falha na rede de atendimento ou que fogem da efetividade do órgão, os casos são remetidos ao Ministério Público. "Os casos mais severos acabam vindo para o MP e alguns se transformam em ações judiciais, que visam a aplicação de uma pena, de três a 20 salários de referências", explica o promotor. "Um dos casos mais comuns é do ajuizamento pelo artigo 249, que diz: descumprir dolosa ou culposamente os deveres aos pátrios poderes ou decorrente da tutela ou da guarda bem assim da autoridade judiciária ou do CT", complementa. Além dessas, há também uma ação criminal pelo abandono intelectual, referente a crianças e adolescentes que não frequentam a escola. "A escola comunica o CT, que aplica uma medida e se o menor continuar faltando as aulas esse caso vem ao MP, que instala o procedimento e tenta forçar com que os pais o levem para a escola. Se isso não der certo temos aplicação de uma ação judicial para medida protetiva, uma representação pela infração administrativa e crime de abandono intelectual", explica. Nos últimos anos, pelo menos 20 ações dessa ordem tramitaram pelo MP. Diferenças entre maus tratos e abandono Há diferenças na caracterização entre maus tratos e abandono. Os maus tratos de natureza física referem-se ao excesso na aplicação de medidas corretivas ou sem motivo justificado. Já abandono material e intelectual refere-se quando os pais saem para trabalhar e deixam os filhos sozinhos ou com irmãos mais velhos, ou, ainda, quando não acompanham seus estudos. "O abandono material e intelectual é separado da situação de maus tratos, lesões corporais e de uma outra situação que é o abuso sexual. Esse último é muito recorrente, mais do que a gente pensa, principalmente envolvendo padrastos e enteadas e padrastos e enteados. A maioria dos casos de abusos sexuais são dentro do âmbito familiar, mas um número significativo não chega ao nosso conhecimento, porque as pessoas não querem se expor", pontua Kaltbach. Evasão escolar preocupa Em Flores da Cunha, o caso que apresenta número mais elevado refere-se a evasão escolar. "As crianças não querem ir para a escola e os pais deixam. E não é só a questão de dizer: meu filho vai para a escola, mas é acompanhar as tarefas extracurriculares. Eles entendem que basta que o seu filho entre no portão da escola que está tudo resolvido, quando isso é um grande engano. Essa falta de incentivo é um abandono intelectual", diz o promotor. De acordo com Kaltbach, esse problema é decorrente de todos os níveis sociais. "Tem estudantes que tem bom nível e os pais não acompanham o desenvolvimento escolar. Isso gera repetência e não evasão escolar, mas no fundo é também um abandono intelectual. O filho está indo para a escola, não está aprendendo nada, mas está indo. Só que existe uma falha nesse processo educacional. A escola não comunica que o estudante participa das aulas, mas não aprende. Isso é diferente no nível econômico inferior, quando existe, principalmente, a evasão escolar. Embora a lei fale que os elevados níveis de repetência devem ser também levados ao MP, somente os de evasão são comunicados. Hoje, na prática, nós temos também um número significativo de repetência que ainda não estamos dando a atenção devida", frisa. Quando acontece a destituição familiar O Código Civil aponta, no artigo 1.638, que: "perderá por ato judicial o poder familiar a mãe que castigar imoderadamente o filho, deixar o filho em abandono, praticar atos contrários a moral e aos bons costumes". Hoje, no Município tramitam de três a quatro ações de destituição familiar. "É um número significativo porque é a medida extrema. A destituição é a última etapa, depois de todas as tentativas que fazemos via CT, via Secretaria Municipal da Saúde, via tratamento médico, psicológico e advertências. O que eu observo aqui em Flores da Cunha é que passamos alguns anos sem ter nenhum caso grave que veio ao nosso conhecimento. E o que tem acontecido nos últimos tempos é que foram surgindo estes casos. Não são muitos, mas são tão graves que poucos casos representam muito", diz o promotor. Ele exemplifica uma ação judicial envolvendo retirada dos filhos que tramita no MP. "Temos um caso em que ficou claro que a mãe dos menores praticava atos sexuais com vários homens na frente dos filhos. Esse fato, por si só, pode fazer com que se retire e destitua de forma permanente o poder familiar do pai e da mãe. Essas crianças são colocadas numa lista de adoção", exemplifica. Entretanto, nem todos os casos são decorrentes de situação de abandono e maus tratos. "Nós temos um caso em que a mãe não quer ficar com o filho, ela quer entregar para a adoção, mas para um determinado casal. Só que a lei veda isso. Uma pessoa que quer entregar uma criança não pode direcionar a adoção, tem que renunciar o seu direito e entregar para a Justiça da Infância e da Juventude e a Justiça vai chamar o casal pela ordem de habilitação, quem está na lista de espera", explica. Outra situação, que é relativamente frequente, é o caso de destituição familiar em crianças com mais de dez anos. "Muitos casos com crianças dessa idade seriam de destituição familiar, só que fica difícil colocar adolescentes para adoção. Então, é preciso muita cautela ao tirar uma criança do âmbito familiar e colocar em um abrigo. Hoje se faz um trabalho de retirar as crianças de abrigos, para que eles não sejam depósitos permanentes de menores", justifica. Política de integração Outro ponto a desejar é uma política de integração operacional entre os órgãos públicos e o que protegem os direitos das crianças e dos adolescentes. A lei prevê isso, mas na prática não ocorre. Por exemplo, não há no Município a implementação de uma equipe multidisciplinar envolvendo pedagogo, psicólogo, psiquiatra, clínico geral, assistente social. "Hoje trabalhamos de maneira mais ou menos isolada. E é fundamental que haja uma integração para trabalharmos de maneira conjunta. Estamos tratando com o Município para criar essa equipe. Para atender não só o menor, mas toda a família. Hoje, existe um atendimento por parte da assistência social, psicóloga, mas volta e meia não tem. E, principalmente, parece que não existe integração no trabalho desses profissionais. Isso que está faltando para que possamos dar um salto grande de qualidade no que está sendo feito", afirma Stéfano Lobato Kaltbach. Denúncias A lei aponta que é dever de todo o cidadão denunciar casos de maus tratos ou abandono de menor. Os estabelecimentos de ensino, hospitais e profissionais da área da saúde têm obrigação em denunciar aos órgãos competentes quando tomam conhecimento de uma determinada situação que possa ser proveniente de maus tratos ou agressão. "É uma responsabilidade de toda a sociedade e um dever do estado. Se um professor detectar alguma situação que comunique o CT ou se alguma criança for levada ao hospital e o médico suspeitar de abuso também deve avisar. O mais importante de tudo é não ser omisso nessas situações de violência ou agressão. Pior que não conseguir detectar é não fazer nada", diz o promotor. As denúncias podem ser feitas ao Conselho Tutelar (3292.9532), Ministério Público (3292.1879), Polícia Civil (3292 2100) e Brigada Militar (3292.2000).

 -
Compartilhe esta notícia:

Outras Notícias:

0 Comentários

Deixe o Seu Comentário